terça-feira, março 04, 2008

DISCOTECA BÁSICA

BOB DYLAN - BLONDE ON BLONDE

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Tente imaginar o seguinte: você tem 25 anos; nos últimos cinco anos de sua vida, você se tornou, primeiro, um campeão dos direitos humanos, herói da política estudantil, trovador querido dos universitários e de todas as colorações da esquerda. Depois, numa velocidade que lhe parece absolutamente alucinante, você se viu no trono do estrelato pop, adorado agora por multidões de jovens. Só alguém foi tão famoso em seu país, os Estados Unidos: Elvis Presley. Mas Presley era um bronco, um ingênuo, uma criatura de seu empresário. E você, não: você sofre de lucidez crônica, muitas vezes paranóica, um lirismo brotando por todos os poros, uma consciência crítica que não o deixa dormir. Você leu, foi ao cinema, gosta de poesia. Mas, hoje, na América ninguém é mais famoso do que você.
Foi nesse contexto que Bob Dylan criou Blonde on Blonde, um álbum duplo vital, obsessivo e transformador, capítulo derradeiro no livro número um de sua biografia. Blonde foi lançado em maio de 66. Em julho, Dylan foi cuspido fora de sua moto Triumph 500, nas cercanias de Woodstock e, com várias costelas quebradas, suspeita de fratura de crânio e lesão cerebral, viu-se confinado a uma cama de hospital por três meses, seguidos de mais um ano de afastamento da vida artística - começava aí o livro dois de sua vida. Mas voltemos atrás.
Voltemos ao jovem Dylan popstar, recém-casado com Sarah Lowndes - artista plástica, poetisa, adepta do zen-budismo -, consumidor contumaz de anfetaminas, excursionando sem cessar de uma costa à outra da América e, nos intervalos, ainda achando tempo para sessões de gravação nos estúdios da Columbia, em Nashville. O jovem Dylan que, no ano anterior, chocara o mundo careta e bem-pensante do festival folk de Newport, subindo ao palco com uma guitarra elétrica ao pescoço, e que, na seqüência, colocara no topo das paradas de sucesso uma longa diatribe sobre os rigores da vida errante, "Like a Rolling Stone".
Todos e cada um desses elementos, características de um momento rico mas tenso de sua vida, estão na música mercurial de Blonde on Blonde, um álbum duplo mas não muito - o lado D é inteirinho ocupado por "Sad Eyed Lady of the Lowlands", uma pungente balada de adoração a Sarah onde Dylan atinge o auge de sua capacidade poética de expressar amor.
"Sad Eyed" acaba sendo um dos raros momentos de serenidade num álbum que respira a energia nervosa da anfetamina. Outro instante de doçura é também uma balada de amor - "Visions of Johanna"; no caso, um adeus sentido mas terno a um grande ex-amor, Joan Baez. Muitos vêem tanto em "Sad Eyed" quanto em "Johanna" as primeiras manifestações de um sentimento realmente religioso em Dylan, a busca de uma dimensão metafísica, espiritual, para a existência.
A maioria dos músicos de Blonde... é de feras de Nashville, do country & western, portanto. Para afiar o gume cortante, ele acrescenta o grande guitarrista de blues, Al Kooper, e seus amigos canadenses e rockers, Levon Helm e Robbie Robertson, do grupo que viria a ser The Band. Órgão, guitarra e harmônica formam o coração elétrico da sonoridade e o disco todo é puxado nos agudos, um som nervoso, quase diáfano. Nos textos, atrás de uma bateria de metáforas, Dylan despeja rancores, paranóias e um insistente pedido de trégua. Ele tem raiva dos hipócritas em "Leopard-Skin Pillbox Hat", das amantes mentirosas em "Just Like a Woman", das situações irremediáveis em "Memphis Blues Again". Não há solução, diz a voz mercurial, ou melhor, a solução é "todo mundo ficar chapado" (ou "ser apedrejado", os dois sentidos de "get stoned", refrão crucial da faixa de abertura, "Rainy Day Women 12 & 35").

(texto de autoria de Ana Maria Bahiana, e publicado originalmente na revista Bizz de agosto de 1986)