Com uma fúria inigualada desde os tempos do festival de Newport, Dylan e a Band partiram para a estrada em 73. O resultado está captado admirávelmente em Before the Flood, um dos melhores álbuns ao vivo de todos os tempos. Como um grande balanço de sua vida e de sua obra, Dylan revê seu próprio repertório com vigor e espírito crítico, reinterpretando espetacularmente seus próprios cavalos-de-batalha e, assim, construindo a transição entre a sua geração - que se embalava confortavelmente nas diluições mornas do rock pomposo dos 70 - e a geração seguinte - que sonhava a imensa ruptura punk, ainda por vir.
Como que impulsionado pela energia nervosa dessa tour, Dylan atravessa os últimos anos 70 a bordo de uma espécie de nuvem magnética. Sem a Band, acompanhado por músicos diversos, quase semi-amadores, ele compõe longas e sinistras canções de amor, abandono e desejo, cada vez mais crípticas e cabalísticas, ocasionalmente comentando algum assunto político que, por acaso, atravesse seu campo de visão. É uma produção estranhamente brilhante, essa do Dylan que vê chegar a meia-idade sem ter encontrado ainda resposta alguma - irregular mas intrigante, angulosa. Os cripto-fãs que analisam cada milímetro de suas letras - uma degeneração da dizimada cultura sixties, como os dead heads e os neo-hippies - não chegam a perceber para onde Dylan está rumando. Emocionalmente à deriva, ele, que sempre pregou a ruptura, anseia agora pela ordem no caos. Qualquer ordem serve.
(texto de autoria de Ana Maria Bahiana, e publicado originalmente na revista Bizz de janeiro de 1990)